O primeiro exemplo de trânsito pode ser encontrado em nós mesmos, pois nosso organismo para viver exige um intenso tráfego interno para transporte de oxigênio, gás carbônico, líquido etc. A gestação de uma nova vida no ventre materno se faz através da inserção de um novo ser nesse trânsito. Portanto, trânsito é sinônimo de vida!
Já dizia John Donne, poeta inglês do século XVI, que homem algum é uma ilha. Portanto, a vida se faz em comunidade que exige trocas entre as pessoas, o que implica em transitar. Na vida comunitária, além de transitar materiais, transita-se também imateriais, como os pensamentos e as ideias que passam de uns aos outros e de geração em geração, e que dão a noção de continuidade da vida. A própria filosofia também reconhece como movimento aquilo que ocorre na mente das pessoas. Pois uma pessoa pode estar absolutamente parada, para quem observa o seu corpo físico, e, ao mesmo tempo, fazendo um enorme deslocamento filosófico, mudando sua própria opinião sobre o mundo e seu ponto de vista sobre a vida etc.
Portanto, para se viver é necessário o trânsito, e este por sua vez é uma evidência da vida.
Quando se observa uma cidade do alto, a bordo de um avião, numa distância em que os homens e os animais ainda não são vistos a olho nu, tem-se a impressão de um cenário em que os veículos são os habitantes vivos deste planeta, pois são eles que dão todas as características de movimentação.
Quando há trânsito identificamos vida. Vida implica movimento. Se o trânsito está em função da vida, é uma incoerência que ele produza morte. Especialmente numa quantidade tão expressiva como ocorre em nosso país, que alcança a absurda cifra de mais de uma centena de óbitos diários. Esse é um desvirtuamento de sua função, uma anomalia do sistema. O trânsito não foi criado para matar, mas para suprir a vida!
Temos diante de nós um desafio, uma causa a ser abraçada pela qual vale a pena viver e morrer. Foi através da conscientização de desafios desse porte que pessoas mudaram a história e contribuíram para uma nova razão de viver. Foi o idealismo que fez pessoas lutarem pela libertação dos escravos, pela transformação de colônias em países independentes, pela busca incessante de direitos civis que propiciem às pessoas serem reconhecidas cada vez mais como iguais. Pelo abraçamento de certas causas é que novos remédios foram descobertos, hospitais foram construídos, ajudas humanitárias se viabilizaram em períodos catastróficos e assim por diante.
Contudo, por trás de todas essas ações que culminaram em muitas vidas poupadas e sofrimentos amenizados, estavam as pessoas que abraçaram a causa e deram a própria vida por ela. Pessoas que encontram uma razão maior para viver ao ponto de entenderem que por essa causa valeria a pena esgotar toda a sua vida e, muitas vezes, tiveram que dá-la como martírio.
Dos poucos que ficaram famosos, muitos só foram reconhecidos posteriormente
pela história. E é a muitos anônimos a quem devemos a qualidade de vida que desfrutamos em nossa sociedade nesta geração.
Recolocar o trânsito, especialmente o de veículos e de pedestres no seu devido lugar, ou seja, a favor da vida é, com certeza, uma dessas causas que precisam ser abraçadas. Entretanto, por duas razões principais, continuidade e dispersão, essa necessidade ainda não foi percebida.
A mortalidade ocorre de maneira contínua de forma que a sociedade se acostumou a conviver com ela. É como um outdoor que, depois de certo tempo, passa a fazer parte da paisagem e deixa de ser notado pelas pessoas. Assim, como a maioria dos sinistros vitimam pessoas isoladamente em diversas regiões geográficas, essas vítimas tornam-se para a mídia apenas frios números estatísticos. Diferentemente de raros casos de sinistros que vitimam muitas pessoas de uma só vez.
Temos uma causa a defender e uma bandeira a levantar, solicitando o engajamento do maior número possível de pessoas para adentrarem numa área onde o roubo, a morte e a destruição estão de mãos dadas se opondo à vida. Isso exige que nos posicionemos a partir da tomada de consciência de que lado estamos nesta luta. Se do lado da vida ou do lado da morte.
Maurício Pontello
Membro do Núcleo Jurídico do OBSERVATÓRIO Nacional de Segurança Viária
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