Antes mesmo de discorrer sobre o tema se faz necessário ressaltar que qualquer cidade “fala com seus moradores”, pois quando se oferece infraestrutura, lazer, cultura e, sobretudo, condições de se locomover dentro de um determinado espaço, utiliza-se das ferramentas trazidas através de políticas pública eficientes para dialogar com cada indivíduo pertencente ou beneficiado por um determinado território.
Neste contexto, portanto, pode-se afirmar que o município deveria ser um poliglota, uma vez que lhe é incumbida a obrigatoriedade de dialogar com cada indivíduo de forma diferente, respeitando e entendendo cada um com sua peculiaridade.
Por sua vez, agora entrando necessariamente no tema, o trânsito[1] desse espaço territorial, seja ele administrado por um ente estadual, municipal ou federal, obrigatoriamente deve possuir a mesma capacidade de “prosa”, ou seja, se expressar de forma a atender igualmente homens e mulheres.
Assim, nasce a reflexão: como anda esse diálogo entre mobilidade urbana e gênero?
Não é necessário ser expert no assunto para se ter uma posição clara sobre tal questão, afinal, o “papo” proposto pela mobilidade certamente atende de uma maneira muito melhor aos homens, tanto no que se diz respeito à segurança do ir e vir, quanto às opções e estruturas dos modais utilizados para tal locomoção.
Um estudo realizado em 2012 pela Secretaria Municipal de desenvolvimento Urbano de São Paulo[2] concluiu que 74,6% dos usuários de ônibus e 62,5% das pessoas que andam a pé são mulheres, além dos milhares de mães na condição de solteiras e dependentes do transporte público para trabalhar e estudar, bem como levar e buscar os filhos na escola, além de outras necessidades que dependem da locomoção dela, portanto, a realidade deveria ser diferente.
Para a engenheira Haydee Silva, autora da tese “evolução dos padrões de deslocamento na região metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero”, traz à baila uma reflexão sobre a necessidade que as mulheres possuem de estudar, trabalhar e ainda assumir as tarefas domésticas como ir ao mercado e farmácia, tornando as pessoas do gênero feminino cada vez mais dependente de uma atenção especial daqueles que elaboram e executam as políticas pública voltadas à mobilidade.
Para quem está vestida de um salto, empurrando um carrinho de bebê ou com uma criança no colo, a locomoção por ruas esburacadas, calçadas desniveladas e estreitas é um grande desafio.
Isso tudo sem mencionar a iluminação precária das ruas, praças e paradas de ônibus que tornam as mulheres em alvos potencias de violência de todo tipo, numa sociedade historicamente machista, deixando duas inaceitáveis opções ao gênero: assumir o risco ou se absterem de se locomover.
Há de se mencionar ainda a absurda violência cotidiana cometida contra as mulheres em um sistema caótico de transporte público que fez com que no ano de 2017 houvesse um aumento de 35% no registro dos casos de abusos sexuais ocorridos nos transportes coletivos e cada vez mais crescente, ou seja, uma entre quatro mulheres já sofreu algum tipo de assédio dentro de ônibus, trem ou metrô ou ainda simplesmente tiveram seus direitos de acesso aos assentos especiais para gestantes violados.
Assim, acredita-se que para as mulheres alcançarem melhores condições de exercerem seu direito constitucionalmente garantido de ir e vir, com a oferta de opção divididas de forma equitativa para os gêneros no que tange a locomoção e mobilidade, é necessário que mais mulheres estejam engajadas nesse processo participando ativamente da tomada de decisões e na execução de políticas públicas, pois, só pode entender de forma tão íntima um problema quem já foi ou ainda é vítima dele.
[1] § 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm
[2] https://www.mobilize.org.br/noticias/10157/mulheres-andam-mais-a-pe-e-de-transporte-publico-que-os-homens.html.
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Flávia Vegh Bissoli - Advogada, pós-graduada em Direito Público e Privado pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus, pós-graduada em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Senac, pós-graduada em Gestão e Legislação de Trânsito pela Faculdade Unyleya, Especialista em Formação de Condutores pela Universidade Bandeirantes de São Paulo, militante exclusivamente na área de trânsito desde 1999, com ampla atuação na esfera administrativa, judicial e educacional de trânsito. Membro da Comissão Especial de Direito Viário da OAB-SP (2017/2018), Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito do Trânsito da OAB-SP (2019-2021), Colaboradora da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal no Quadro Direito de Trânsito. Observadora Certificada pelo OBSERVATÓRIO Nacional de Segurança Viária-ONSV.
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