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Velozes e Furiosos 7 e a identidade do motorista brasileiro

Escrito por Portal ONSV

04 MAI 2015 - 19H17

Cinema e Segurança Viária

Fátima Gigliotti

No final de semana anterior ao feriado de 21 de abril, o blockbuster Velozes & Furiosos 7 (Fast and Furious 7, 2015), mais um capítulo da franquia até agora estrelada pela dupla Vin Diesel e Paul Walker, alcançou a marca de mais de US$ 1,1 bilhão em apenas três semanas de exibição nos cinemas de todo o mundo, tornando-se o sétimo longa-metragem mais rentável da história do cinema. A série insere-se no subgênero de filmes de esporte, os filmes de corridas de carros, ainda que com tramas policiais e de ação, já que tudo começou em Los Angeles com a gangue de corridas de rua liderada pelo personagem de Vin Diesel, Dominic Toretto.

No Brasil – que foi cenário do quinto filme da franquia, Velozes & Furiosos – Operação Rio -, no mesmo período, o filme levou quase sete milhões de espectadores ao circuito nacional. São resultados impressionantes capazes de despertar algumas reflexões oportunas sobre a tradição de filmes de corridas do cinema americano, o imaginário que eles veiculam e a identidade do motorista brasileiro face a essas possíveis influências do comportamento sobre rodas nas pistas das cidades e nas estradas do país.

Neste mês, este Observatório Nacional de Segurança Viária tem se dedicado à campanha de “Paz no Trânsito” (Boletim 1 e Boletim 2) que precede as ações do Maio Amarelo, movimento internacional de conscientização para a redução de acidentes de trânsito. Dados do relatório Retrato da Segurança Viária 2014 comprovam “um crescimento constante no número de óbitos nos últimos 14 anos. Em 2012, foram 45,7 mil vítimas fatais, o que representa um óbito a cada 12 minutos, e 177,4 mil feridos. A título de comparação, na Guerra do Iraque morreram cerca de 37 mil pessoas em 8 anos de conflito”.

São três os grandes temas e os principais riscos que não apenas comprometem seriamente a paz no trânsito como levam aos impressionantes números de acidentes no Brasil: o excesso de velocidade, a utilização irresponsável do celular e o álcool. Nos filmes de corrida, velocidade e vitória são os objetos do desejo dos personagens que trazem com eles valores não necessariamente estabelecidos na sociedade brasileira, mas que ecoam décadas de aculturação ditada pela força do entretenimento norte-americano.

Os filmes de gângsteres dos anos 1930 e 1940, por exemplo, muitos deles ambientados em Chicago, já tinham como componente cênico importantes perseguições de carros entre mocinhos e bandidos, policiais e criminosos, que acabaram ditando as regras dos filmes policiais e de ação das décadas seguintes e até os dias atuais. Clássicos como Bullitt (1968), do diretor Peter Yates, com Steve McQueen, em que um policial caça pelas ruas de San Francisco o mafioso que assassinou uma testemunha sob sua proteção; ou Operação França (The French Connection, 1971), de William Friedkin, com Gene Hackman como o policial de Nova York que se vê frente a uma operação de tráfico de drogas internacional – e cuja cena de perseguição inspirou até movimentos de videogames - deixaram os espectadores sem fôlego com suas célebres sequências de perseguições de carros.

E quem pode imaginar um filme de James Bond, o agente 007, ou de Tom Cruise na série Missão Impossível (Mission: Impossible, 1996) ou mesmos os heróis dos quadrinhos, de Batman, Homem-Aranha à trupe de Os Vingadores (The Avengers, 2015) sem pelo menos uma grande sequência de perseguição e/ou corrida de carros? Nesses filmes, o heroísmo fantasioso, a “coragem” de desafiar as leis da natureza está a serviço de um propósito: capturar o vilão.

O mesmo não se pode dizer dos filmes de corrida ou em torno de corridas de carros, em que o objetivo é, na maioria das vezes, não apenas competir, mas realmente ganhar – estão lá a velocidade e a vitória, disfarçadas de aventura, com o único propósito da competição e afirmação pessoal.

A questão principal é que esses filmes pertencem assumidamente ao domínio da fantasia, recheados de efeitos especiais, e portanto não respeitam em absoluto as condições mínimas e essenciais de segurança viária ou sequer da biologia humana – os personagens submetem-se em geral a riscos absurdos sem nunca sofrerem as consequências reais de suas atitudes, e frequentemente os mocinhos, depois das manobras mais absurdas, saem de seus carros com apenas alguns arranhões, como em Velozes & Furiosos 7.

A tolerância a essa inverdade vem sendo cultivada há décadas, inicialmente com inofensivos desenhos animados e mais recentemente com sofisticados videogames. Para os mais velhos, Corrida Maluca (Wacky Races, 1868/1970), inspirada aliás no filme A Corrida do Século (The Great Race, 1965) e os inesquecíveis personagens Dick Vigarista, Penélope Charmosa e os irmãos da Quadrilha da Morte; e os seis filmes do simpático fusca Herbie, sendo o primeiro deles Se Meu Fusca Falasse (Herbie – The Love Bug, 1968) são exemplares nesse sentido. Carros (Cars, 2006) e Carros 2 (Cars 2, 2011) são também animações que, de alguma maneira, introduzem o público infantil moderno ao universo das corridas de carros, algo que raramente integra o cotidiano de uma criança.

Há grandes clássicos do cinema que encenaram a corrida de carros entre jovens, algo típico da sociedade americana da época, como Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955), dirigido por Nicholas Ray, um dos três filmes do ídolo James Dean, que imortalizou também a atriz Natalie Wood justamente na cena em que ela dá início à uma corrida de carros fatal. James Dean morreu num acidente de carro aos 24 anos, em 1955, a caminho de uma corrida de carros na qual iria competir – ele estava se preparando para ser piloto de corrida, além de ator. Em Loucura de Verão (American Graffiti, 1973), o diretor George Lucas, em seu segundo trabalho, que revelou o ator Harrison Ford, também como Ray, apresenta a corrida de carros como um evento de afirmação do jovem americano da época e também de disputa de egos com eventuais colegas rivais.

Contribuem ainda para a criação desse imaginário fictício americano das ruas e estradas filmes como os já clássicos O Encurralado (Duel, 1971) ou Louca Escapada (The Sugarland Express, 1974), ambos de Steven Spielberg – o primeiro foi a estreia do diretor em longa-metragem, embora de um telefilme, e o segundo a estreia do diretor no cinema. São ambos suspenses em que o automóvel, por si só, pode ser um vilão, cheio de poder desgovernado com o único propósito de perseguir e destruir a vida de quem cruze o seu caminho. Assim como A Morte Pede Carona (The Hitcher, 1986).

Colocar um ônibus cheio de passageiros em alta velocidade para evitar a explosão de uma bomba, como acontece em Velocidade Máxima (Speed, 1994), com Keanu Reeves e Sandra Bullock, pode ser bom cinema, mas alimenta a febre de velocidade, mãe de tantos acidentes na vida real. Filmes como 60 Segundos (Gone in Sixty Seconds, 2000), com Nicolas Cage e Angelina Jolie, e os recentes e estilizados Drive (2011), com o badalado Ryan Gosling, e O Procurado (Wanted, 2008), com James McAvoy e novamente Angelina Jolie, fazem o  mesmo, com o agravante de colocar a velocidade e manobras arriscadíssimas, se não impossíveis, a serviço do crime, sem grandes disfarces.

Em 60 Segundos, um ladrão de carros aposentado (Cage) é obrigado a reunir seus colaboradores para roubar 50 carros numa única noite e assim salvar a vida de seu irmão, sequestrado pelo mandante do crime. Em Drive, um exímio motorista que ajuda criminosos a fugirem de assaltos e roubos se complica quando decide ajudar sua atraente vizinha. E no violento O Procurado, matadores profissionais perseguem nomes de uma lista de prováveis criminosos para eliminá-los antes que façam o pior. Recentemente, Need for Speed – O Filme (Need for Speed, 2014), adaptação para os cinemas do videogame de mesmo título, fez sucesso com a história e um corredor de ruas que acaba de sair da prisão e entra numa corrida que atravessa o país em busca de vingança.

São produtos da indústria do cinema e do entretenimento de alto nível, que por força da economia internacional e da ausência de políticas de proteção da cultura nacional, veiculam com grande sucesso, associados ao ato de dirigir, valores e comportamentos talvez estranhos à natureza pacata e colaborativa do brasileiro e, por extensão, do motorista brasileiro. Até há bem pouco tempo, sequências de corridas de carros eram raras na cinematografia brasileira, e os automóveis cumpriam nos filmes nacionais o papel que costumam cumprir no cotidiano do brasileiro – veículos para transportar famílias, pessoas, coisas.

No delicado filme Não por Acaso (2008), por exemplo, do diretor carioca Philippe Barcinski, estrelado por Rodrigo Santoro, Leonardo Medeiros e Letícia Sabatella, uma ode à vida na capital paulistana, há uma abordagem do transporte viário muito mais típica do cinema brasileiro e mesmo até do próprio brasileiro. O filme narra duas histórias paralelas, de Pedro (Santoro), que vive de fabricar mesas de sinuca; e de Ênio (Medeiros), que trabalha na companhia de tráfego, como vigilante dos semáforos da cidade de São Paulo, e os encontros e desencontros na vida dos dois personagens.

Por meio do personagem de Ênio e de seu trabalho, no entanto, o diretor e corroteirista Barcinski faz um retrato apaixonado e lírico do mapa das ruas da cidade, do tráfego alucinante dos carros e da intrincada engenharia necessária para que o fluxo do trânsito aconteça numa das mais caóticas, populosas e encantadoras capitais do mundo. Sem velocidade, sem competição, sem carros turbinados.

Em 2010, a ONU – Organização das Nações Unidas, face às alarmantes cifras de acidentes de carros fatais em todo o mundo, criou a Década da Ação pela Segurança no Trânsito (2011/2020), com o objetivo de incentivar nos países de todo o mundo iniciativas para a redução em 50% do número de mortes resultantes de acidentes de trânsito, ou seja, salvar cinco milhões de vidas. Uma das condições essenciais para o sucesso da proposta da ONU é a conscientização dos motoristas e dos condutores sobre as normas que garantem a segurança e diminuem os riscos no trânsito.

O excesso de velocidade é um dos principais problemas de segurança viária no Brasil e em todo o mundo, contribuindo de forma decisiva para aumentar taxas de colisões, lesões e fatalidades. Diante desse cenário, parece importante refletir sobre as informações e as influências que podem determinar, ainda que de maneira secundária, a identidade do motorista brasileiro. O culto à velocidade como afirmação pessoal e a necessidade da vitória, por exemplo, podem ser típicos de uma sociedade em que a concorrência e a competição levadas às últimas consequências são combustíveis para a economia do país, e a flexibilidade ética e o individualismo estão a serviço do poder e do consumo. Serão esses valores da sociedade brasileira?

Ainda que fossem, uma fatalidade relacionada com a superprodução Velozes & Furiosos 7 poderia trazer mais um dado para reflexão sobre a velocidade e seu papel fundamental na segurança viária e na preservação de vidas. O ator Paul Walker, protagonista da série no papel do ex-policial Brian O'Conner, morreu prematuramente, aos 40 anos, em novembro de 2013, durante as filmagens, vítima de um acidente de carro. Ele estava no banco do passageiro, no carro conduzido por um amigo tão acima da velocidade permitida na rodovia que o carro bateu em uma árvore, andou à deriva, bateu novamente em um poste, em outra árvore e pegou fogo. Paul Walker havia rodado mais da metade de suas cenas no sétimo filme da franquia, que foi finalizado com a participação dos dois irmãos do ator, Caleb e Cody Walker, e com efeitos especiais. Houve uma adaptação no roteiro para justificar a saída do personagem de Paul Walker de cena, e o filme faz uma comovente homenagem ao ator nas cenas finais.

Fátima Gigliotti, jornalista, é crítica de cinema, com pós-graduada em Jornalismo Científico pelo Labjor – Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo/Unicamp e mestre em Linguística e Semiótica do Cinema pela FFLCH – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

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Cidadania e Trânsito: ações para conscientização e segurança viária

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Programa Educa apresenta novidades em 2024 e ações para o Maio Amarelo durante reunião nacional

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