Por Márcia Pontes
Do ponto de vista técnico, uma somatória de fatores, haja vista que um acidente raramente tem uma causa isolada. De modo clássico, os acidentes são causados por imprudência, imperícia ou negligência, que não são exclusivas de quem está atrás do volante como se costuma pensar. Essas são as causas ligadas ao comportamento do condutor. Temos ainda as causas externas, ambientais e políticas ligadas às questões de engenharia, de responsabilidade do poder público também para com as questões de educação para o trânsito. Aliás, esta parece ser outra grande falácia nos discursos mais inflamados porque ao mesmo tempo em que a sociedade clama desesperadamente por educação para o trânsito na escola como disciplina obrigatória, não acredita em seus efeitos para orientar e salvar as vidas adultas. É como se só a criança fosse capaz de aprender, os adultos não.
E assim, cidadãos, governos e sociedade vão alimentando o discurso de que só o que poderá salvar a humanidade do genocídio em vias públicas é educar as novas gerações. Os bem crescidinhos, os “macacos velhos” que continuem morrendo porque não têm mais jeito. Há quem diga que esses não aprendem mais nada que preste, pelo menos, em relação à segurança no trânsito.
Só que desde que o mundo é mundo são os adultos, os crescidinhos, os macacos velhos que educam as crianças e exigir que este papel se inverta é jogar sobre os ombros das crianças uma responsabilidade para a qual elas não estão preparadas. É um fardo pesado demais para seres em formação que precisam de adultos educados, equilibrados e responsáveis para ensiná-las e educá-las para o trânsito e para a vida.
Cada um de nós tem em si muito de nossos pais e dos adultos que nos educaram, e nos identificamos o tempo todo com isso. Porque toda pessoa precisa antes aprender para ensinar. Falamos porque conseguimos ouvir e assim treinamos os nossos ouvidos para a aprendizagem da fala. Respeitamos ou desrespeitamos na sociedade as regras que aprendemos desde cedo na família com quem nos educa ou (des)educa.
Muito do que aprendemos foi por imitação, vendo nossos pais fazendo a coisa certa, e nos orgulhamos disto quando reproduzimos certos comportamentos, atitudes e até defendendo o modo de pensar mais conservador que aprendemos com eles. Só que quando se fala de trânsito, porque cabe às crianças a tarefa de educar os adultos?
Será que um pai que coloca o filho adolescente ou ainda criança atrás do volante de um carro ou moto e começa a ensinar a dirigir antes do tempo estaria passando a ele a seguinte mensagem: “Filho, as leis existem para serem respeitadas, mas respeite só aquelas que quiser”?
A sociedade precisa diferenciar entre o momento ingênuo em que as crianças chegam em casa entusiasmadas contando que aprenderam na escola a atravessar na faixa com a mão estendida, ou até mesmo entre quando mostram o formulário de multa moral e avisam: “pai, se você pisar na bola eu vou te multar”, do momento de educar. Pois, desde que o mundo é mundo sempre foi e será o adulto que educará a criança.
Os pequenos podem até ajudar a tentar corrigir atitudes insensatas e arriscadas dos adultos no trânsito, mas, definitivamente, não é delas a obrigação ou tarefa de educar os adultos. Isto, na verdade, está muito claro para os professores no dia a dia quando mandam bilhetes na agenda, a criança entrega e o pai não lê e, quando lê, não assina. Ou quando a escola solicita a presença do pai ou responsável urgente na escola para resolver um problema grave de indisciplina do filho e este pai ou responsável nunca aparece.
A escola também lida e se comove com aquela criança que aprendeu na escola a se defender dos perigos do trânsito, mas que foi atropelada porque não conseguiu dissuadir o adulto teimoso e irresponsável que a conduzia de atravessar em meio aos carros em uma via movimentada.
Uma das coisas que muito me preocupa nessa concepção de educação para o trânsito em que a criança é quem deve ser educada para que consiga educar o adulto, é justamente esse abandono da população não escolar, sempre de fora das ações estruturais, sistêmicas e integradas de preservação da vida.
Campanhas educativas de trânsito sem planejamento, resumidas a palestras feitas em datas comemorativas uma ou duas vezes por ano, sem cronograma, sem indicadores de avaliação, sem mensuração de resultados práticos e que depositam todas as esperanças nas crianças educadoras de adultos é manter o padrão de voo das galinhas. Muito barulho e pouco bater de asas. Levantar do solo, então.... só alguns centímetros.
Há que se sair da superficialidade do discurso das campanhas educativas de trânsito. Há que se desfocar da criança como se fosse ela o único meio de se fazer educação para o trânsito e começar urgente a reformar o pensamento acerca de que toda vida deve ser priorizada e salva.
O que nos diferencia das demais espécies é a nossa capacidade de aprendizagem. Seres humanos aprendem até o último suspiro de vida, independente de serem crianças ou adultos. Pensar em um modelo de educação para o trânsito feito exclusivamente para a criança por acreditar que os adultos não tenham mais jeito e não sejam mais capazes de aprender é condenar o futuro da própria criança.
Afinal, desde que o mundo é mundo é o adulto que educa a criança e não o inverso. Há que se considerar que para que essa criançada bem educada para o trânsito cresça e comece a fazer a diferença elas não dependerão somente dos professores e da escola. Mas, acima de tudo, de pais bem educados. Para a vida e para o trânsito.
Márcia Pontes, graduada em Segurança no Trânsito pela Unisul Virtual (SC), é Educadora de trânsito em Santa Catarina e Observadora Certificada do ONSV (OBSERVATÓRIO Nacional de Segurança Viária)
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