Mobilidade cotidiana é o termo usado para fazer referência aos deslocamentos praticados pelos indivíduos para a realização de suas tarefas rotineiras. Ida e volta ao trabalho, à escola, ao supermercado, levar o filho na natação, todos esses movimentos estão inclusos na mobilidade cotidiana. Se o espaço de vida é definido por Courgeau (1988) como espaço não apenas de passagem e onde as pessoas residem, mas todos os lugares com os quais o indivíduo se relaciona, então a mobilidade cotidiana englobaria todos os movimentos dentro do espaço de vida.
Deslocar-se é algo inerente ao homem. Como afirma o político e especialista em Demografia italiano Massimo Livi-Bacci, “os seres humanos têm pernas. A capacidade de deslocamento de um lugar a outro é intrínseca à nossa natureza e um valioso atributo para a adaptação e melhoramento das condições de vida.” (BACCI, 2012, p.61). Se o homem dispusesse apenas das próprias pernas para realizar seus deslocamentos, a diferença das possibilidades de mobilidade entre as pessoas estaria restrita à capacidade física de cada um. Mas desde que o homem começou a domesticar animais para transporte de carga e pessoas, os meios de transporte introduziram um fator de desigualdade de oportunidades entre os indivíduos.
O transporte urbano surge não apenas como elemento técnico, mas também de construção social da cidade, porque a velocidade introduziu novos conceitos de espaço e tempo (MIRALLES-GUASCH, 2002, p.11) Dentro do espaço industrial, os meios de transporte tiveram o papel de vencer e reequilibrar “os efeitos de desintegração espacial intrínseca na evolução da cidade” (idem, p.12). Bondes, trens e, posteriormente, ônibus e carros aproximaram locais que antes não poderiam coexistir no espaço de vida de uma mesma pessoa.
Porém, o motor não compete com as pernas. Ou melhor: compete, mas sempre vence. De acordo com Giucci (2004), o primeiro acidente fatal envolvendo um automóvel de que se tem notícia ocorreu em 1896, em Londres. Este autor explica que exatamente naquele ano havia sido revogado o Red Flag Act, que tornava obrigatório que uma pessoa caminhasse à frente de cada automóvel sinalizando com uma bandeira vermelha, a fim de evitar acidentes. Conta-se que nesse primeiro acidente fatal o condutor trafegava a 7 km/h e chegou a buzinar e gritar para a senhora que cruzava o caminho, mas nenhum dos dois parou. Desde então, o número de vítimas vem apresentando uma escalada.
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 1,24 milhões de pessoas morreram em decorrência de acidentes de trânsito em 2013. A crescente preocupação com essas mortes, que poderiam ser evitadas, levou à criação da Década de Ações para a Segurança no Trânsito 2011-2020. Somente no Brasil, a cada ano quase 45 mil pessoas morrem vítimas de acidentes. É o mesmo que dizer que morre uma pessoa a cada 12 minutos. Ou, ainda, que a cada ano morrem no trânsito brasileiro o equivalente a 30 Titanics. Mas por que essas mortes no trânsito não causam a mesma comoção que um navio que afunda ou um avião que colide contra uma encosta?
A supervalorização do automóvel como forma de solucionar o problema da mobilidade das pessoas ocorreu em todo o mundo, a começar pela Europa e pelos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XX.
“Esta tecnologia incorporada aos meios de comunicação se ajustava de forma muito coerente à ideia de desenvolvimento que o sistema econômico havia introduzido: a massificação do consumo, a reafirmação da propriedade privada, o culto à liberdade individual, o aumento do nível de vida (se identificando com o incremento da aquisição de bens).” (MIRALLES-GUASCH, 2002, p.109)
E a associação do automóvel e da motocicleta com poder e liberdade persiste até hoje. Dados divulgados pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) destacam que 38% dos deslocamentos nos grandes centros urbanos são feitos a pé e grande parte das pessoas que fazem essas viagens apontou a impossibilidade de pagar a tarifa do transporte público (MORTARI; EUZÉBIO, 2009).
Uma pesquisa realizada pelo Metrô na Região Metropolitana de São Paulo mostrou que o aumento da renda média da população fez com que muitas pessoas passassem a utilizar o transporte público coletivo (idem). Já a motocicleta surgiu como opção ágil e mais barata que o carro e foi ganhando espaço não apenas para passeio e lazer, mas também como meio de transporte para o trabalho (ANDRADE; MELLO-JORGE, 2001). O carro, por sua vez, é apontado por Vasconcellos (2000) como um instrumento de reprodução da classe média, que depende desse meio de transporte para realizar suas diversas atividades cotidianas. É como se houvesse uma escala de ascensão social que é acompanhada pelos meios de transporte: os mais pobres andam a pé; quando as condições socioeconômicas melhoram, as pessoas passam a utilizar o transporte coletivo; e o passo seguinte é o automóvel, podendo a motocicleta ser um estágio intermediário (ou final, sem chegar ao automóvel).
E as condições socioeconômicas não afetam apenas os meios de transporte utilizados, mas também o número médio de viagens que as pessoas realizam a cada dia. É o que mostra, por exemplo, o relatório de Resultados da Pesquisa Origem e Destino da Região Metropolitana de Campinas 2011. De acordo com este documento, as pessoas com maior índice de mobilidade são aquelas classificadas como pertencentes à classe econômica A, com uma média de 2,21 viagens/dia. Esse número cai na medida em que decrescem as classes econômicas, chegando a 1,29 viagens/dia para as pessoas de classe econômica D e 1,35 viagens/dia para pessoas de classe E.
Considerando que alguém que vai ao trabalho e volta para casa já realiza duas viagens, essa média revela a imobilidade de parte importante da população. É como se a cada três pessoas das classes D ou E, duas fizessem apenas duas viagens por dia (ida e volta do trabalho ou da escola, por exemplo) e uma terceira não saísse de casa. Como não há cortes de idade, é possível que esses grupos populacionais incluam um grande número de crianças. Ainda assim, a diferença de mobilidade entre as classes econômicas não pode ser ignorada.
O aumento recente da frota de veículos automotores no Brasil revela em números o anseio da população por melhores condições de mobilidade. De 2002 a 2012, estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a população brasileira teve um aumento de 11,06%, passando de 174,6 milhões para aproximadamente 194 milhões de habitantes. No mesmo período, a frota total mais que dobrou (de 35,5 milhões para 76,1 milhões de veículos) e considerando apenas as motocicletas a frota mais que triplicou, passando de 5,8 para 20,1 milhões de motos. Com a “explosão” da frota e tantos incentivos para a aquisição desses bens de consumo, é difícil convencer a população a deixar o carro em casa. Há campanhas organizadas e abrangentes, sendo emblemático o Dia Mundial sem Carro, celebrado em 22 de setembro, cujo objetivo é conscientizar a população sobre os prejuízos sociais e ambientais do uso excessivo de automóveis e motocicletas e os benefícios de se usar o transporte coletivo ou os meios não motorizados (bicicleta e a pé, principalmente). Mas são discursos aparentemente contraditórios, que em conjunto transmitem uma mensagem como: “compre um carro (ou moto), mas utilize-o com moderação”. A ideia pode ser seguida à risca, desde que as condições de transporte oferecidas sejam atraentes.
Nesse contexto de aumento das taxas de motorização (número de veículos por 1000 habitantes), o aumento das mortes por acidentes é um efeito colateral indesejado. Estudos realizados em países desenvolvidos mostram que o aumento da renda per capita levou ao aumento das taxas de motorização e, em um primeiro momento, o número de mortes por acidentes de trânsito subiu. Porém, em um segundo momento, com as melhorias das condições de tráfego, as mudanças na legislação de trânsito, aperfeiçoamento do atendimento às vítimas, o número de mortes passou a cair – ainda que a média de veículos por 1000 habitantes continuasse aumentando (SÖDERLUND; ZWI, 1995; VAN BEECK et al.,2000). Sob esse ponto de vista, seria de se esperar que em alguns anos o Brasil “naturalmente” começasse a experimentar uma queda na mortalidade por acidentes. Porém, algumas observações devem ser feitas. A primeira é que a renda per capita não é um bom indicador de melhoria das condições de vida no país, devido às desigualdades sociais. A segunda é que a grande alteração na legislação de trânsito já foi realizada em 1998, com a instituição do novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Nos anos posteriores observou-se uma redução drástica dos acidentes, mas já no início dos anos 2000 os efeitos benéficos do CTB foram desaparecendo. O mesmo se aplica à Lei Seca, criada em 2008, que teve impacto importante na queda dos acidentes, mas cujos efeitos já não são mais observados na mesma intensidade. Não se questiona aqui a importância do novo Código e da Lei. Sem dúvida eles alteraram o comportamento do brasileiro no trânsito. Mas há aspectos que fogem as políticas de trânsito, propriamente.
Sem negar a relevância das medidas de fiscalização, de engenharia de tráfego e de educação, é necessário olhar para a mobilidade como condição fundamental para que a população exerça sua cidadania. Se a mancha urbana se espalha de tal forma que as pessoas precisem se deslocar 20 ou 30 quilômetros ou mais por dia só para chegar ao trabalho, é natural que elas busquem os meios mais fáceis e mais rápidos de fazê-lo. É possível que muitas dessas pessoas optem por usar motocicleta e talvez não estejam capacitadas para fazê-lo sem correr riscos. Outras poderão escolher o automóvel e não necessariamente terão uma conduta responsável e segura. Porém, a simples culpabilização dos indivíduos pela condição de vítimas tem efeito limitado. É preciso investigar causas maiores, estruturais, que estão por trás dos acidentes e, na medida do possível, combatê-las.
Ana Carolina Soares Bertho, jornalista formada pela PUC Campinas e doutora em Demografia pelo NEPO/Unicamp (Núcleo de Estudos de População), é pesquisadora e professora na Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE)/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Referências Bibliográficas
ANDRADE, S. M.; MELLO-JORGE, M. H. P. Acidentes de transporte terrestre em cidade da Região Sul do Brasil: avaliação da cobertura e qualidade dos dados. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.17, n.6, p.1449-1456, nov./dez.2001.
COURGEAU, D. Méthodes de mesure de la mobilité spatiale: migrations internes, mobilité temporaire, navettes. Paris: Éditions de L´Institut National D´études Démographiques, 1988.
GIUCCI, G. A vida cultural do automóvel: percursos da modernidade cinética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
MIRALLES-GUASCH, C. Ciudad y transporte: el binomio imperfecto. 1a. ed. Barcelona: Editorial Ariel, 2002.
MORTARI, R.; EUZÉBIO, G. L. O custo do caos. Desafios do Desenvolvimento, Brasília, IPEA, ago.2009.
SMT - SECRETARIA DOS TRANSPORTES METROPOLITANOS. Pesquisa de Origem e Destino Domiciliar e Pesquisa de Linha de Contorno na Região Metropolitana de Campinas (Relatório). Campinas: Oficina Engenheiros Consultores Associados, 2012.
SÖDERLUND, N.; ZWI, A.B. Traffic-related mortality in industrialized and less developed countries. Bulletin of the World Health Organization, 73(2), p. 175-182, 1995.
VAN BEECK, E.F.; BORSBOOM, G.J.J.; MACKENBACH, J.P. Economic development and traffic accident mortality in the industrialized world, 1962-1990. International Journal of Epidemiology, 29, p.503-509, 2000.
VASCONCELLOS, E.A. Transporte urbano nos países em desenvolvimento: reflexões e propostas. 3.ed. São Paulo: Annablume, 2000. 284p.
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