[caption id="attachment_934" align="alignnone" width="660"] "O espaço egoísta." Revista chilena Planeo. [/caption]
Em meio a tantas invenções importantes e presentes em nosso cotidiano, a bicicleta surgiu e se tornou um dos veículos particulares mais utilizados em todo o globo. É possível citar inúmeros motivos que contribuem para o aumento do uso da bicicleta, entre eles, a redução de congestionamentos, da poluição sonora e do ar, a diminuição dos problemas de saúde, ocasionando em muitas reduções de gastos. Em se tratando de mobilidade, a bicicleta funciona muito bem desde meados de 1900 e, com certeza, não é a maior geradora de mortes e problemas de trânsito na sociedade, sendo na realidade redutora desses índices. Sem dúvida, nas últimas décadas, a bicicleta tem ganhado o prestígio e atenção em todo o mundo. O processo não tem sido fácil [1], há muito atrito e conflitos de interesse [2]. Mas felizmente depois de enfrentar muito preconceito e resistência, muitos países têm aceitado que não há mais como excluir a bicicleta do trânsito [3,4,5].
Nos EUA, os americanos acreditam que a bicicleta é a solução para problemas de saúde pública do país. Um grupo de designers da Co.Design elaborou infográficos com base em dados do Healthcare Management Degree, sobre as vantagens do uso cotidiano da bicicleta como uma saída simples e objetiva para os problemas de tempo, espaço e dinheiro, “salvando vidas e notas de dólar” [6].
Na Europa, por exemplo, onde existem cidades históricas, com vielas e monumentos, foi priorizado o investimento em transporte público de qualidade e políticas pró-bicicletas ao invés de infraestrutura viária para suportar o aumento do número de carros, evitando-se a destruição desses pontos históricos.
Algumas cidades estão tão infladas que estão começando a restringir o trânsito de automóveis nos centros urbanos [7]. No início, não era esperado, mas reduzir o tráfego de veículos em centros urbanos acabou sendo muito positivo para os negócios [8], pois de bicicleta a pessoa é mais livre para encostar em qualquer lugar, passando devagar também é possível notar mais comércios que antes eram despercebidos quando dentro do automóvel. A Europa continua sendo destino nº 1 de viajantes de todo mundo [9] e a bicicleta movimenta anualmente 200 bilhões de euros [10], gerando mais emprego do que a siderurgia, minas e pedreiras [11]. Um recente estudo publicado pela London School of Economics concluiu que o setor do ciclismo movimenta 3,3 bilhões de euros [12] somente no Reino Unido.
O mais importante fator de mudança é o fato de que há 30 anos, a Europa apresentava um índice muito alto de mortos e sequelados no trânsito [13] (realidade que vivenciamos hoje no Brasil), fazendo com que ações fossem tomadas para corrigir este cenário.
Em comparação a países de 1º mundo, podemos relatar um atraso médio de 30 anos nesse processo evolutivo de mobilidade. Prova disto é o nosso número de mortos no trânsito que quase se equipara a soma de mortos de 15 países da Comunidade Européia no ano de 1980. Atualmente, o mercado europeu automobilístico está em crise [14], e as montadoras estão recorrendo aos mercados emergentes, fazendo com que o Brasil receba mais incentivos na aquisição de automóveis. Por um bom tempo o Brasil adotou a a redução do IPI dos automóveis e a redução e isenção de IPVA [15] em automóveis antigos causam alto índice de poluição e oferecem maiores riscos. Ou seja, parece que para o governo o importante é o cidadão ter um carro.
Sendo este um símbolo de poder e status, muitos se esforçam além dos limites para obtenção do seu veículo e não levam em conta que os custos da cultura do automóvel extrapolam a barreira do bolso, causando custos na saúde, para o emocional e depreciando a qualidade de vida das pessoas.
Compreensível que o automóvel é convidativo por sua comodidade e, muitas vezes, necessário, pois os investimentos em transporte público no país beiram a precariedade. Porém, seus malefícios para a saúde são comprovados. Em São Paulo, por exemplo, 90% da poluição é causada pelo uso do automóvel [16]. Não há provas, mas podemos associar o processo de envelhecimento humano, a atrofia de nossos músculos, enfraquecimeno do coração, e até a preguiça e o sedentarismo com o uso exagerado dos veículos. Em alguns pequenos municípios interioranos brasileiros, onde o poder aquisitivo é menor e as vendas não são tão incentivadas, o número de bicicletas ainda supera o de veículos motorizados [17]. Isso é muito bom, mas o “progresso” um dia as alcançará.
O que presenciamos atualmente no Brasil - e também no mundo - é uma disputa de interesses e ideais entre motoristas e ciclistas. Para mudar nosso comportamento é necessário entender a origem desses conflitos. A revista americana Wired Magazine publicou um artigo, escrito por Adam Mann [18], que desmistifica em uma lista os argumentos tradicionalmente utilizados contra os usuários de bicicleta nas cidades, vale a pena conferi-lo na íntegra. De maneira resumida:
Os conflitos aparecem quando a presença dos ciclistas começa aumentar em espaços culturalmente destinados ao automóveis. Entre 2011 e 2015, Brasília ultrapassou o Rio de Janeiro; e, é a cidade com maior estrutura cicloviária do Brasil [19]. A capital federal e São Paulo foram as cidades brasileiras que mais ampliaram a estrutura para bicicletas nos últimos dois anos, mas ambas são criticadas por “atrapalhar o trânsito e o comércio”. Essas são justificativas egoístas. É necessário reconhecer que ocorrem falhas de planejamento e baixa qualidade das vias construídas ou demarcadas. Ainda assim, como resultado, na cidade de São Paulo, o número de ciclistas está aumentando e as mortes neste modal, diminuindo [20].
Vias segregadas (ciclovias ou ciclofaixas) são importantes, algumas vezes, necessárias. É fundamental saber ponderar e lidar com sabedoria cada situação. O engenheiro civil, Marcos Paulo Schlickmann, explica em um artigo [21] - que analisa a implantação da rede cicloviária na cidade inglesa Milton Keynes, conhecida como Redways - que a segregação é uma "faca de dois gumes" e deixa claro que pedestres e ciclistas têm necessidades diferentes e isso não deve ser tratado de maneira generalizada por parte dos decisores públicos em colocar pedestres e ciclistas no mesmo âmbito. Obviamente, pois ciclistas são como motociclistas só que menos velozes, eles estão sobre um veículo, precisando trafegar nas vias. Já os pedestres podem tomar qualquer caminho, o mais curto possível de preferência.
O mau planejamento demonstra falta de comprometimento com ações sérias e efetivas, deixando má impressão sob o governo, produzindo ciclistas mal acostumados com o trânsito (destreinados com situações reais de perigo), causando atitudes inseguras por parte dos usuários da ciclovia, gerando rejeição das obras mal feitas pelos ciclistas mais experientes, descaso na manutenção das obras, ocasionando conflito entre todos os modais (ciclistas x motoristas e até pedestres).
A segregação é uma questão delicada que precisa ser analisada e tratada com respeito caso a caso. É necessário que o governo enxergue os usuários com respeito, questionando as opiniões e sugestões dos mesmos, já que os ciclistas estão sempre dispostos a colaborar com o poder público [22], respondendo inquéritos, fazendo análises, contagens de tráfego, ajudando no desenho de novas infraestruturas.
Sem dúvida, muitos ciclistas não obedecem ao CTB (Código de Trânsito Brasileiro), assim como muitos motoristas não o fazem (muito mais); mas um erro não justifica o outro e devemos entender qual deles oferece mais riscos. Carros podem facilmente ceifar a vida do próximo a qualquer momento. Engenheiros estudaram para estabelecer padrões e, acredite, sempre existe um bom motivo pelo qual as vias possuem certos limites de velocidade. Não devemos esperar um acidente acontecer para entender isso. Ainda que o governo esteja omisso nas mudanças, tão necessárias, não se deve isentar o motorista da culpa pelos próprios erros, vale lembrar que a alta velocidade, o uso do celular e a embriaguez, lideram os crimes mais cometidos ao volante.
A bicicleta não é só um meio de transporte, ela é um agente transformador. Uma bicicleta na via significa um carro a menos gerando problemas de trânsito, e torna a cidade melhor, inclusive para quem dirige. Entender isso é o primeiro passo para respeitar e admirar aquele ser humano em sua máquina de propulsão humana. Aqui, vão algumas dicas pra se tornar mais compreensivo com os ciclistas no trânsito:
O caminho para mudanças? Já estamos nele. Na Europa, o número de vendas de bicicletas já supera o de automóveis [23]. Embora ainda há muito o que melhorar. Os grandes centros urbanos brasileiros estão evoluindo bastante no quesito mobilidade. O Brasil já começou a abrir os olhos para modais mais inteligentes e sustentáveis. Isso é bom, pois depois das carroças, as bicicletas são os veículos sob duas rodas mais antigos do mundo e até hoje estão aí. Queiram ou não queiram, elas necessitam de mais atenção e reconhecimento. As novas políticas públicas demonstram o reconhecimento de erros em políticas antigas e o grande interesse em repará-los. É necessário e saudável, cada vez mais, um planejamento participativo do governo com a sociedade.
No fim das contas não se trata de uma disputa “Motoristas x Ciclistas”. Não existe tal coisa, são veículos diferentes com propostas diferentes e para que haja harmonia, basta que todos sigam as normas de trânsito de forma adequada. Está estressado? Não vá pescar… deixe os peixinhos em paz e vá pedalar!
Gabriel Chagas P&D - Observatório Nacional de Segurança Viária.
Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos seus autores, não representando portanto a opinião desta organização.
Referências:
[2] http://vadebike.org/2015/03/nota-resposta-acao-mpe-contra-ciclovias-sao-paulo-entidades-associacoes/
[3] http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/01/como-alemanha-mudou-sua-visao-sobre-ciclovias.html
[4] http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/14/internacional/1413306632_768035.html
[5] http://vadebike.org/2015/04/super-ciclovias-londres-plano-modernizacao-ruas/
[6] http://vadebike.org/2012/02/bicicleta-como-solucao-para-problemas-de-saude-publica/
[7] http://vadebike.org/2014/12/paris-madrid-restringir-carros-centro-ciclovias-bicicletas/
[8] http://vadebike.org/2015/04/sebrae-sp-cartilha-comercio-bicicletas-cicloportunidades/
[9] http://top10mais.org/top-10-paises-que-mais-recebem-turistas-no-mundo/
[10] http://www.bikepedalecia.com.br/bicicleta-movimenta-economia-na-europa/
[11] http://vadebike.org/2015/01/bicicleta-emprego-comercio-industria-siderurgica-minas-pedreiras-europa/
[13] http://www.jornalopcao.com.br/colunas/carta-da-europa/a-europa-e-o-transito-uma-historia-de-sucesso
[14] http://www.bioagencia.com.br/noticias/index.php/detail/3612/mercado-automotivo-europeu-em-crise
[16] http://vadebike.org/2009/07/a-demonizacao-dos-automoveis/
[17] http://movimentoconviva.com.br/cidade-tem-mais-bicicletas-do-que-carros/
[18] http://www.wired.com/2014/11/9-things-drivers-need-stop-saying-bikes-vs-cars-debate/
[19] http://www.mobilize.org.br/estatisticas/28/estrutura-cicloviaria-em-cidades-do-brasil-km.html
[20] http://www.mobilize.org.br/estatisticas/43/mortes-de-ciclistas-em-sao-paulo.html
[21] http://transportacao.com/2014/06/06/16-bicicletas-no-so-automveis-ou-a-no-soluo-para-milton-keynes/
[22] http://vadebike.org/2015/03/nota-resposta-acao-mpe-contra-ciclovias-sao-paulo-entidades-associacoes/
[23] http://exame.abril.com.br/economia/noticias/ja-se-vende-mais-bicicletas-que-carros-na-europa
Créditos da arte: http://revistaplaneo.uc.cl/
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